O Quatrilho

A transa foi boa. Raquel estava deitada fitando o teto, ainda ofegante. Ao seu lado e também de barriga para cima, Gabriel olhava de lado para as mechas de cabelo que se espalhavam pelo travesseiro e decidiu enrolar a ponta de uma delas em seus dedos. Ficaram assim por um par de minutos apenas.

- Nossa, preciso de um banho neste calor. - externou ele.

- Vou ver o que o Rodrigo está fazendo, então. Depois tomo uma ducha. - ela respondeu.

A moça vestiu o short do pijama e a blusinha que fora arrancada mais cedo, sem se preocupar com as roupas íntimas. Caminhou do quarto até a sala e encontrou Rodrigo assitindo TV.

- Está vendo o quê?

- Nada específico; estou zapeando. Acabou de acabar A Cor Púrpura. Acredita que nunca tinha visto? Filme triste da porra...

- Nossa, Deus me livre. Vi uma vez só e precisei de um pote de sorvete para curar o ânimo depois. Vai continuar vendo TV depois?

- Sei lá. Alguma ideia?

- Quer continuar Big Bang Theory de onde paramos?

- A Sara não vai se chatear, não?

- Eu assisto de novo com ela depois.

- Fechado. Vou colocando aqui.

- Vou fazer uma pipoca e já sento com você.

Gabriel saiu do banheiro sem se secar por completo. A umidade que ainda cobria levemente sua pele o ajudava a se refrescar. Se vestiu e foi falar com os colegas de apartamento na sala. Encontrou os dois no sofá, Raquel com a cabeça no colo de Rodrigo ganhando um cafuné.

- Gente, vou buscar uma pizza, refrigerante e cerveja. - ele conseguiu a atenção da dupla e continuou, - Alguém quer alguma coisa específica?

- Eu aceito uma cerveja. Duas, vai. A pizza pode ser do sabor que vocês preferirem. - disse Rodrigo.

- Eu quero uma long neck só, para acompanhar vocês. Traz uma Coca de dois litros, pode ser? - Raquel emendou.

- E o sabor da pizza?

- Qualquer coisa com queijo está bom.

- OK. Vou trazer duas pizzas, aí a Sara esquenta no micro-ondas quando chegar do plantão.

Quase ao mesmo tempo, o par que estava em frente à TV concordou com a cabeça.

- Está com dinheiro? - Raquel interpelou Gabriel logo antes de ele sair. - Se quiser, leva meu cartão. A senha é a mesma de sempre.

- Fica tranquila. Pago no VR e lanço na caixinha da casa para a gente acertar. - Colocou seu boné e saiu pela porta cantarolando.

A comida demorou. Quase deu tempo de ver dois episódios seguidos. Mas quando chegou, interrompeu todas as atividades de casa e uniu os três ao redor da mesa. Rodrigo, o mais falador, puxou assunto sobre como estava gostando mais de ler no e-book do que no papel, apesar de ser fã de ter a estante cheia de livros. Daí passaram para tecnologia, decoração, reality shows, futebol e terminaram na velha discussão de se cabia um cachorrinho morando com eles. Gabriel e Sara eram contra. Rodrigo e Raquel ansiavam, mas não o suficiente para comprar a briga.

A louça do dia era dela. Rodrigo foi tirar os lixos para colocá-los na lixeira lá no subsolo. Gabriel aproveitou que estava de bobeira e ligou uma música para preencher o ambiente. Ao fim das atividades, sentaram-se no sofá para mexer no celular enquanto curtiam o som, cada um do seu jeito: Gabriel, apesar de calorento, sentia-se bem quando seu companheiro ficava com a cabeça em seu ombro; Raquel, a exemplo de mais cedo, se esparramou e colocou a cabeça no colo do primeiro, como um gato que pede um afago. Ganhou.

- Gente, estou pingando de sono. Vou me deitar. - anunciou ela depois de um bom tempo que estavam à toa vidrados na telinha que estava palma da mão.

- Vou contigo. - Rodrigo disse.

- Vamos todos então. - falou Gabriel, e os três se espreguiçaram para abandonar os postos que ocuparam por uma playlist inteira.

Raquel precisava de uma chuveirada antes de se estirar na cama. Sentia a pele grudando daquele suor que aos poucos toma a pele depois de um dia abafado. Foi para o banheiro da suíte dos fundos enquanto os dois escovaram os dentes no banheiro da suíte da frente. Com a higiene feita mais rápida, Rodrigo vestiu o pijama e se deitou na cama de casal ali mesmo. Quando Gabriel terminou a sua e se arrumou para dormir, viu o companheiro gostosamente largado no colchão e arriscou:

- Posso dormir aqui com você hoje? A Raquel vai apagar e queria bater papo mais um pouco.

- Aconteceu alguma coisa?

- Não, nada de mais. Só estou meio chateado com o lance do time lá, o Cadu querendo decidir tudo e deformando o que o pessoal todo construiu na amizade ao longo desses anos.

- Ah, cara. Você me contou. Foda... Mas diz aí, você chegou a comentar com ele?

E o assunto fluiu enquanto os dois rapazes deitavam lado a lado.

Raquel saiu do banho, colocou a camisola e foi tomar uma água na cozinha. No caminho, encontrou-os no outro quarto, no escuro, conversando.

- Está tudo bem?

- Uhum. - Ela não ouviu quem respondeu.

- Quer deitar aqui com a gente? A gente se aperta. - Gabriel convidou.

- Não, obrigada. Vou dormir no momento em que encostar na cama. Neste calor, vou me esparramar no colchão do outro quarto então. Gabi, você vai dormir aí ou lá?

- Vou ficar por aqui.

- Beleza, então deixa um recado para a Sara ir lá para o quarto comigo, senão ela vai acabar acordando vocês quando chegar.

-Pode deixar.

Ela se despediu com um beijo nos lábios de cada um deles e se retirou. Depois do copo d'água e conforme esperado, a moça recostou e apagou. Os dois ficaram papeando um bom tempo ainda antes de se redenderem a Morfeu.

Sara chegou cansada do trabalho. O hospital esteve cheio a noite inteira e ela mal teve tempo de relaxar. Viu a pizza sobre a mesa com bons olhos e sabia que fora ideia da Raquel o prato com talheres e guardanapo esperando por ela. Alimentada, foi para o quarto e viu o recado na porta. Sorriu para si mesma. Fazia tempo que não dormia com Raquel e estava com saudade de cheirar seus longos cabelos antes de sair do ar.

Apesar do calor, tomou um banho quente para os músculos destensionarem. Hidratou as pernas, o que fazia questão de fazer todo dia, vestiu uma camiseta velha e uma calcinha agradável de algodão. Deitou-se ao lado da companheira e se ajeitou. Com o o movimento, acordou-a.

- Chegou? Tudo bem no serviço? - A voz sonolenta e grave saia com dificuldade.

- Sim, só um pouco cansativo.

- Dorme bem.

- Você também. - O que foi encerrado com um selinho.

A plantonista encontrou uma posição confortável, puxou cuidadosamente um pouco do cabelo de Raquel e o aproximou do nariz. Dormiu mais rápido do que pode sentir.

Amarelo

Você conhece ao menos três pessoas que já pensaram seriamente em suicídio. Isso é uma afirmação.

Sabe qual é a maior preocupação de quem tem depressão em estágios intermediários? Não transparecer. Não deixar que os outros saibam. Porque não é todo mundo que entende, compreende, empatiza. "É frescura!", "É falta de trabalho, de ter com o que ocupar a cabeça!", "Mas Fulano tem de tudo, uma vida ótima, não tem motivos para estar assim!". E sem saber, quem fala isso mais piora do que ajuda. Aí é melhor esconder mesmo, colocar uma máscara de felicidade e sofrer sozinho.

O depressivo, ao contrário do que o senso comum pode levar a crer, não é só o ser humano triste, enfurnado em casa no escuro, olhando para o nada em silêncio enquanto o dia passa na janela. Esses COM CERTEZA estão depressivos, inclusive pedindo ajuda com o pouco de forças que têm. Mas sabe quem mais pode ter depressão? O ator engraçado, astro de filmes de comédia, chafariz de alegria para a plateia em polvorosa. Descanse em paz, Robin Williams. Aquele líder espiritual que cura a alma de multidões em nome de Jesus, com muita maestria. Deus te guie, padre Marcelo Rossi. O jornalista dedicado, genial, referência para a profissão. Um abraço para Jorge Pontual.

Então, quem sabe aquele seu amigo engraçadão, que de tudo faz piada, que leva a vida leve e sem preocupações não esteja simplesmente tentando fugir do peso que é levar a vida no dia-a-dia? Ou seu primo comilão, orgulhoso de devorar meia pizza em 10 minutos, astro da arte de engolir o que vê na frente, que pode estar descontando as frustrações e fontes de tristeza em um bom prato de comida? Talvez sua irmã, seu marido, a pessoa ao alcance de um braço...

Antes da paranoia bater à porta e a gente achar que todo mundo parece estar a um passo de entrar no vale das trevas, sugiro uma reflexão. Vamos falar mais abertamente sobre depressão. Sobre sentir a diferença entre uma tristeza passageira e uma tristeza permanente. Vamos nos abrir mais para ouvir e também para falar. Encontre pessoas de confiança e fale de como se sente. E se você for a pessoa de confiança escolhida, ouça com atenção e empatia, despida ao máximo de preconceitos. Você pode estar salvando uma vida.

Para quem não se sente à vontade para se abrir com ninguém, procure o CVV (Centro de Valorização da Vida - disque 188 ou acesse o chat no site). Assim que possível, procure apoio médico e psicológico, no profissional particular, no plano de saúde ou no SUS. Verbalizar as aflições ajuda bastante.

Por fim, sugiro um texto que me marcou bastante. Leia de mente aberta. 5 coisas que eu gostaria de dizer às pessoas que pensam em suicídio.

Fique bem. Chegue ao dia seguinte. Apesar de tudo, tenha certeza de que vale a pena.

Bons.tapas

Eu.leio.também

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