"beta-B"

Por que eu uso beta-B, doutor? Ah, essa é fácil. Aqui na clínica de reabilitação todo mundo já me fez essa pergunta. Você não leu a minha ficha, leu? Acredito que não. Mas tudo bem, repetir a história faz passar meu tempo neste limbo maldito em que me enfiaram.

Se você enxergasse algo que mais ninguém vê, mas para você é tão real quanto todas as outras coisas a sua volta, como você reagiria? Contaria para mais alguém? Guardaria em segredo? E se essas visões te passassem informações cruciais, questões de vida ou morte para as demais pessoas? Ainda assim guardaria para si?

Deve estar me achando paranoico agora, né? É o que todos dizem. Eu vejo cores que ninguém mais vê. Eu vejo números e formas sobre as cabeças, como névoa permanente, indicando a hora e a forma da morte de cada um. Eu ouço ideias e sinto intenções. Eu percebo nos olhares quem machucou ou vai machucar alguém. Eu ouço a voz do algoz e da vítima quando cruzo com algum deles na rua. Moradores de rua viciados compartilham seus delírios comigo só de nos aproximarmos. Mandantes de assassinatos cheiram a sangue seco e pus. Mulheres que apanham dos maridos, filhos abusados pelos pais, antigas vítimas de sequestros, assaltos, torturas... Eu atraio todos, como um ímã de profanações, e suas súplicas enchem minha boca de um gosto amargo, que persiste por horas. Guardar segredo sobre esse tipo de coisa não mantém a consciência em dia quando o que você absorveu sobre a pessoa vem à tona depois de um tempo.

Eu já tentei alertar a polícia de tudo isso, e como consequência sou suspeito de dois crimes que não cometi. Estou tranquilo quanto a isso porque tenho álibis fortes que me tiram das cenas dos crimes, mas não tenho mais nenhuma apoio oficial para ajudar aqueles que, intencionalmente ou não (não sei dizer), dividem seu sofrimento comigo.

Agora tente pegar um metrô ou um ônibus nessa condição. Experimente entrar em um restaurante, dividir um elevador cheio, ir ao centro da cidade. Vá dormir enquanto ouve o vizinho de cima pensando no plano de como matar o chefe. Sinta o cheiro ácido e enjoativo do casal de baixo, que se odeia, se trai mutuamente escondido e se suporta simplesmente porque nenhum quer pagar pensão para o outro por conta do filho de 6 anos de idade.

Só tem uma resposta, doutor: beta-B. O mundo fica acinzentado e silencioso, os cheiros somem e o tempo passa devagar. As vozes cessam, as visões param, nada mais tem gosto. A vida fica comum e pálida. Contudo, é mais suportável de ser vivida.

O mais curioso dessa conjuntura é que só vim parar aqui porque a comercialização de beta-B é proibida, sendo que faz mal apenas a mim mesmo (apesar de eu considerar um bem frente ao que tenho que enfrentar sem ele). Vocês me dão essas pílulas fraquinhas, achando que estão ajudando, só que me têm feito passar o tempo todo confuso entre o que é realidade, o que é alucinação causada por essas merdas e o que é resquício das sensações originais que não foram embora.

Por exemplo, doutor, os números e as formas sobre a sua cabeça estão aí. Quer saber o momento e o modo como você vai passar desta pra uma melhor? Não te conto; você não aguentaria viver com essa informação. Não sem beta-B (que ironia!).

O que eu queria mesmo, doutor, era não ver além do que todo mundo vê.

Quase lá

Havia o banco do parque, havia André e não havia mais nada. O rapaz estava sentado ali havia um bom tempo, costas levemente curvadas para frente, mãos de palmas unidas e guarnecidas entre as coxas, que se comprimiam como quem quer se esquentar, apesar do clima ameno de vinte e poucos graus que fazia ali.

Ele olhava para frente, mas não olhava para nada. Às vezes uma folha se mexia para cá ou para lá ao vento, ou um passarinho rapidamente descia ao chão, bicava uma ou duas vezes o passeio de cimento cru e alçava voo de novo. As poucas árvores ao redor, velhas, de troncos grossos e de casca escura, nada faziam, como é de se esperar de uma árvore. Nos espaços de terra nua, nem uma formiga. O único som que ouvia era o do vento, que raramente vinha tirar o aspecto de fotografia da paisagem e lhe dava segundos de movimento e áudio.

Sem que a visse chegar, uma mulher sentou-se no banco a um braço de distância de André. Ela era muito branca, magra e dos lábios finos. Os cabelos levemente ondulados desciam apenas até os ombros, mas não tinham um corte definido. Parecia que ela os tinha deixado crescer à toa e se conformou com o resultado até ali. Vestia uma camiseta de algodão preta e justa, uma calça de linho também preta e uma sapatilha preta de verniz de bico arredondado. Se fosse preciso adivinhar, dava pra se dizer que ela tinha acabado de sair de um lugar formal, mas tinha falhado miseravelmente em se arrumar para a ocasião.

Com os dedos, cinco gravetos ossudos na extremidade da mão, ela envolvia a alça de uma pequena maleta de couro, também preta, de dois palmos de comprimento e menos de um de altura. Os detalhes da alça e da fechadura eram dourados, o único ponto que divergia da dualidade preto-roupa-branco-pele dela. Ao se sentar, ela apoiou a valise no colo e a abriu, alheia ao fato de André observá-la sem discrição.

De dentro da maleta, a moça tirou dois tubinhos metálicos e os rosqueou cuidadosamente, montando uma flauta transversal maravilhosa. Não havia marcas, arranhões, sinais de batidas, mancha ou gordura. Em suma, daria para dizer que se tratava de um instrumento novo em folha. Finda a montagem, ela olhou diretamente nos olhos de André, como se soubesse desde o começo que era fitada, e começou a tocar.

A melodia era densa, apesar da sonoridade suave e relaxante da flauta. As notas se sobrepunham e se quebravam, e sabe-se lá de onde ela tirava fôlego para tocar tantas de uma só vez. Ela tombava o corpo para frente e para trás, no ritmo da música, de forma pendular, e em pouco tempo fechou os olhos, consumindo o próprio produto a que dava vida. Sem se dar conta, André começara a balançar o corpo da mesma forma e as mãos, antes escondidas entre as pernas, pousavam sobre as tábuas que faziam o assento do banco.

A música parecia uma súplica. A voz de alguém que pede socorro cantando suas mágoas e pedindo para ser resgatada. Um choro contido, sem a amargura do desesperado, mas com a tristeza de quem reconhece que pede ajuda sem saber se será ouvido. André fechou os olhos e notou que já murmurava a canção. Ela era cíclica, apesar de longa, como um refrão que se repete e gruda, mas que não enjoa.

Em determinado momento, André abriu os olhos e só ele cantarolava. Aparentemente, a flautista já havia encerrado sua apresentação particular havia um tempo e o rapaz fazia seu solo. Ele se envergonhou da situação, e mais ainda quando percebeu que a mão direita, que antes estava no banco, apoiava-se com delicadeza na coxa de sabiá dela.

A mão recuou por reflexo e o rosto queimou em vermelhidão também sem seu controle. Ela resolveu falar:

- Fique tranquilo, André! Não tenha medo... Meu chamo Cida e estou intencionalmente te hipnotizando.

Enquanto ele trocava a timidez pela surpresa de uma desconhecida saber seu nome, a moça abria um sorriso modesto e começava a inclinar o corpo ainda sentado na direção dele.

Nesse momento, André começou a detalhar os traços de Cida e rapidamente chegou à conclusão de que ela era linda. Ele a desejou, de coração. Compreendeu, sem que nada fosse dito, que ganharia um beijo daquela deusa a sua frente e relaxou o corpo, para se entregar. Nenhum dos dois fechou os olhos na aproximação. Ele também passou a tombar o corpo na direção dela, mas mais vagarosamente. Ambos sorriam. Ambos estavam na mesma frequencia. Ambos cantarolavam a música funesta, no mesmo compasso.

- Cida, deixe o garoto!

A harmonia foi interrompida bruscamente por uma voz masculina grave, levemente rouca.

- Téo! Você foi mais rápido desta vez... - devolveu Cida.

O casal sentado voltava à posição inicial de antes da flauta começar a ser tocada, ela com naturalidade, ele visivelmente embaraçado.

- Você é namorada dele? Olha, senhor, eu não quis... Digo, eu não tive intenção... Quero dizer, não aconteceu nada, é que... Cida, o que se passa? Senhor, me desculpe, mas eu...

- Fique tranquilo, não vou fazer nada com você. - tranquilizou Téo, cortando de vez as frases já recortadas que saiam da boca do jovem.

- Cida, vou tomar sua companhia um tempo. - ele continuou, e aparentemente a moça não se incomodou, já que respondeu com um sorriso e um aceno de cabeça. - Venha, rapaz! Vamos dar uma volta e conversar um pouco.

André fitou o homem em pé a sua frente. De meia altura, pele escurecida pelo sol, barba por fazer e vincos no rosto, daqueles que estão mais para vales que armazenam experiência do que dobras que entregam a velhice, o homem lhe sorria. Téo não parecia um nome que combinava com o que via. Na ideia de André, "Téo" não tem cabelos grisalhos.

Sem saber exatamente o porquê, assim como tudo desde que se deu conta que estava sentado naquela praça, o rapaz obedeceu e se levantou. Antes de dar o primeiro passo, pôde notar que o parque estava movimentado com esquilos, pássaros, joaninhas, lagartixas e toda a sorte de pequenos animais.

Cida fez questão de se despedir:

- Tchau, André! Será que nos veremos de novo?

Crise

Ele andava pelo canteiro central da avenida movimentada com as mãos no bolso. A chuva caia sobre sua cabeça e seus ombros sem violência, mas constante.

Então palavras como granizo começaram a despencar e o acertar de forma impiedosa. Não havia cobertura; não havia árvore, toldo ou ponto de ônibus. Só o chão e sua pele escoravam as pedradas.

O estômago retorcia-se com a batalha entre a comida e os sapos engolidos. Ele não sabia se estava enjoado disso ou da vida.

Tremia. Bastante. De frio, de raiva, de medo, de ânsia. Os motoristas dos carros que passavam ao lado fitavam-no, como quem avista um animal em um zoológico. Eles em latas e o rapaz do lado de fora, um safári bizarro, cuja atração é o estranho.

Ele começou a correr, pelo que as pedradas aumentaram de intensidade. Os olhares se intensificaram. Gelo e borboletas se somaram aos ocupantes de sua barriga. Seu olho vertia águas de chuva e de pânico. Trovões. Mais trovões.

Aí um raio o atingiu. O corpo se retorceu e desligou...

Ele acordou um tempo depois, mas não soube precisar quanto. O céu ainda estava nublado, mas não havia sinal de chuva, nem no chão, nem em suas roupas. Curiosos em roda começaram a se afastar para dar espaço pra ele se levantar, enquanto cochichavam entre si questões sobre o que teria acontecido ali. Sem olhar-lhes no olhos, o rapaz bateu a poeira do corpo, meteu as mãos nos bolsos e seguiu a caminhar, sentindo como se tivesse acabado de acordar de um terrível pesadelo.

Foi quando uma gota de chuva caiu do céu.

Hoje e amanhã

Hoje eu sou boêmio
Festeiro e anfitrião
O foco da diversão
Admirado
Alegre
Expansivo
Eu sei que ela se orgulha de mim

Hoje eu sou esportista
Musculoso e másculo
O capitão da equipe
Admirado
Líder
Carismático
Eu sei que ela se orgulha de mim

Hoje eu sou descolado
Engraçado e jovial
O amigo de todos
Admirado
Acessível
Sociável
Eu sei que ela se orgulha de mim

Hoje eu sou famoso
Seguido e comentado
O galã da Globo
Admirado
Referência
Estrela
Eu sei que ela se orgulha de mim

Hoje eu sou gentil
Empático e simpático
O ombro da compreensão
Admirado
Pacífico
Conciliador
Eu sei que ela se orgulha de mim

Amanhã serei eu mesmo
Autêntico e comum
Que atrai olhares
Não por ser admirado
Mas por ser diferente
Estranho
Eu sei que ela tem vergonha assim

Verdade Chinesa

Sonhei com meu avô uma noite dessas.

Eu estava em pé em um espaço que parecia bastante com o esconderijo do V, do quadrinho/fime V de Vingança. O requinte e o bom gosto da decoração e iluminação estavam mesclados ao rústico das paredes de rocha. Belos quadros ornavam as laterais e tapetes cobriam o chão. A mobília tinha muita madeira maciça aparente e almofadas de veludo azul escuro. Abajures dispersavam e quebravam a luz, deixando o ambiente livre de sombras sem afogar os olhos na claridade.

Ele estava sentado bem no centro do espaço, em uma cadeira também de madeira, muito bem entalhada. De pernas totalmente cruzadas (como mulher cruza, diriam os imbecis), seu joelho de cima servia de apoio para o braço esquerdo. Sobre este, o cotovelo direito repousava sem pressioná-lo e a mão direita apoiava sua cabeça reclinada enquanto os dedos da mesma mão seguravam um cigarro aceso. Uma música suave preenchia o ar.

Vestia um terno cinza escuro risca de giz de corte reto, mesmo tecido da calça social. Camisa branca, gravata preta fina e sapato social impecavelmente engraxado. Os cabelos crespos eram da cor da roupa e estavam penteados para trás com esmero. Um belo senhor negro.

"Senta.", ele falou, sem eu ter tempo de perceber se pedia ou se ordenava. De qualquer forma, obedeci sem problemas. "Quer um cigarro? Quando você era menor eu não podia te oferecer...". Tudo isso ele fez sem se mexer, enquanto eu tomava assento a sua frente.

Fiz um não com a cabeça e agradeci. Emendei um "Bença, vô", como era de costume quando ele estava vivo, pelo que a resposta começou de forma gestual: ele levantou a cabeça e me olhou. O resto do corpo permaneceu na mesma posição. Alguns segundos depois, replicou: "Uai, mas você não diz por aí que é ateu?". Breve pausa e "Deus abençoe" foi ouvido até a cabeça voltar a se apoiar na mão, não sem antes tomar mais um trago do fumo.

Eu estava inerte, anestesiado com tudo aquilo. Fiquei observando o lugar por um tempo e depois foquei meus olhos em meu avô. Bateu uma ponta de saudade do velho. Tudo ali soava melancólico.

"Percebi que você tem andado triste." Mais um trago e de volta à posição de repouso. "Eu te entendo. Sei como é." Sem que eu me desse conta, um calor tomou conta do meu corpo e duas pocinhas se formaram na base dos meus olhos. "Pra mim, a vida é um mar de tristezas com ilhas de felicidade. Sua mãe e seus tios nascendo, por exemplo, são algumas dessas ilhas. Sua avó aceitando casar comigo, outra. E a gente segue navegando, às vezes até nadando na ressaca da maré, de um porto a outro, até a ilha se desfazer no tempo e nos pôr na água novamente."

"Mas a tristeza não é igual a dor. A dor está contida nela, mas não é ela no todo. A tristeza é a solidão de caminhar de Mendanha a Diamantina sozinho, perdido nos próprios pensamentos, com um pouco de fome por ter saído de casa só com um pãozinho na barriga. A dor é a palma-do-inferno que eu pegava pra comer, depois de tirar os espinhos, quando a barriga roncava porque já tinha dado conta do pão e pedia mais coisa. O que a gente tem que fazer é comer um pouquinho mais antes de sair de casa, pra ficar triste sem dor."

"Eu nasci preto, pobre, de família humilde. Não tive vida fácil. E aprendi assim a conviver com a tristeza, espantando a dor. Por sua avó, deixei a polícia. Ela foi o pãozinho a mais que me fez tomar a decisão triste de deixar a farda."

Essa hora, ele já olhava para mim, enquanto apagava o cigarro no cinzeiro, assoprando a última nuvem de tabaco e nicotina no ar.

"Acho que vocês pegaram um pouco disso de mim, sabe? Sua mãe, a Penha... Eu precisei morrer para aprender a falar pra vocês como se é capaz de viver triste. O que a gente tem que fazer é ter fé em Deus, ou se agarrar no que você quiser, já que inventou essa moda de ateu aí, fé em Deus e paciência. Não perder a cabeça. Queimar os problemas na ponta de um cigarro e soprá-los para cima. E aproveitar cada ilha com tudo o que ela tem a oferecer, antes de ter que botar o barco na água de novo."

"Já trouxe um bocado de gente aqui pra conversar, e você não vai ser o último. Quero fazer o que puder do lado de cá pra contar o que eu não fui capaz quando estava do lado de lá." Ele pegou no bolso o maço de cigarros e ficou com ele na mão, sem retirar nenhum de dentro.

"Eu gosto de ficar triste sozinho. Mas não é assim que você precisa fazer. Ache sua forma de abraçar a tristeza sem dor. Se quiser, faça como eu: senta, toma um trago, dá um tempo que a próxima ilha já deve estar à vista". Ele sacou um bastão branco do maço. "Hora de acordar, menino. Deita aí no tapete, fecha os olhos e relaxa."

Antes de seguir as instruções de meu avô, levantei-me chorando e lhe dei um abraço forte. Ele retribuiu com seus braços magros e pontudos, sem se levantar. "Bença, vô", "Deus abençoe". Me deitei e a última coisa que ouvi foi o barulho do isqueiro estalando ao ser aceso.

Carta aberta a Deus

Prezado,

Já que estamos de relações cortadas, não vejo outra forma de me comunicar a não ser através desta missiva, pelo que a faço em aberto por falta de endereço de destinatário conhecido para envio.

Antes de mais nada, quero dizer que o considero um ser onipotente infantiloide e irresponsável, um ególatra, um sádico, um ditador. Antes de ser um despejo de insultos despropositados, trata-se de uma constatação, e me darei o trabalho de explanar cada uma das palavras que uso para o definir na frase anterior.

A mim, parece razoável imaginar o que leva uma entidade de poder infinito a criar o universo. Seria algo como o que chamamos de tédio, acometido após o tempo infinito que se passou até você decidir que deveria ter algo para fazer, para acompanhar, para o distrair. Desenhar meticulosamente como tudo se dará, iniciar o processo e observar seu o desenvolvimento. O princípio, a faísca e daí a expansão. Todo o vazio ser povoado de espaço, e este de matéria e energia. As ordenações hierárquicas astronômicas: planetas, estrelas, sistemas estelares, aglomerados, galáxias, clusters. O mesmo se dando em escala físico-química: os elementos, as moléculas, os materiais, as rochas e os gases. Um belo trabalho, devo reconhecer, sem medo de cair em contradição.

Não está claro para nós, de forma indubitável, se foi na fase de planejamento ou depois de o projeto em andamento, mas você decidiu que a vida deveria fazer parte desse enorme devaneio sensorial que chamamos de universo. Criações que são capazes de ativamente parasitar recursos do entorno para se multiplicar. Vida.

Só que a vida é finita e perecível, além de extremamente frágil. Sendo onipotente, por que a fez ser tão fugaz? Qualquer ser vivo é capaz de tirar a vida de outro com esforço relativamente pequeno. Alguns seres vivos, inclusive, sobrevivem e cumprem seu papel de extrair recursos do entorno exclusivamente encerrando a vida de outros seres vivos. Essa violência o apraz? O satisfaz? Ou simplesmente o distrai, da mesma forma que uma supernova sendo gerada, ou um buraco negro aspirando material em seu entorno?

Já ouvi que a vida foi dádiva sua, que ela não pertence ao ser vivo que a usufrui, sendo direito seu tirá-la quando acredita que é o momento. Um bom ponto, se formos excluir a raça humana do horizonte de argumentação e ignorar que qualquer outro ser vivo não possui consciência. Prevalece a teoria do playground em escala incomensurável e me permite confirmar a alcunha de infantiloide. Se por acaso esse argumento não se firmar, então vejo um erro crasso no design da criação, e chamá-lo de irresponsável dá conta de substituir o adjetivo anterior com plenitude.

Tragamos à vista a raça humana agora, para completar a defesa que faço dos meus argumentos. Somos seres vivos, como todos os outros, igualmente frágeis, porém dotados de consciência. Somos capazes de perceber você. E tudo me leva a crer que era essa a intenção, ou novamente retornaremos ao ponto do erro na criação, e ao "irresponsável". A próxima pergunta, então, passa a ser: qual o motivo de percebermos você? Você quer essa atenção? Você quer que saibamos do seu imenso poder? Você quer ser ADORADO pelo seu imenso poder?

Posso estar enganado na condução das perguntas, intencionalmente tendenciosas a uma resposta "sim" ao final. Contudo, fiz assim porque essa é a principal linha de raciocínio que ouço para a resposta à primeira das perguntas, que é aberta. Desta forma, me ponho a indagar: por que essa fixação na adoração? Por que a necessidade de seres conscientes da sua existência que declaradamente se curvem a você em adoração à sua capacidade infinita? Até ter uma resposta melhor, chego à egolatria denunciada inicialmente. E te desprezo por ser tão poderoso e tão mesquinho ao mesmo tempo.

Se a ameaça constante ao frágil fio vital que nos mantém por aqui fosse a única razão do meu desabafo, já teríamos caminhado para a conclusão. Entretanto, não basta criar seres conscientes que devem o adorar. Esses seres, nós, passamos por privações e por dor. Por angústias. Por desesperos. Por medo. Parabéns, inclusive, pela depressão. Excelente toque para que, além do meio agressivo em que vivemos, que nos ameaça o tempo todo, podemos também ser nossos próprios algozes, encerrando a tão sagrada vida que você nos deu sem maiores dificuldades. Aqui, eu me recuso a sequer cogitar os argumentos que contrapõe esta visão. Apenas o sadismo me responde a contento. A destituição completa dos prazeres de alguém não faz com que seus sentimentos para com você sejam mais puros e genuínos. Até o inquisidor mais estúpido sabe que a pessoa que agoniza se sujeita a qualquer situação que lhe diminua o sofrimento.

Por fim, temos as famigeradas exigências comportamentais. Em algumas leituras feitas pelos que te professam, tratam-se de regras rígidas e inflexíveis. Em outras, sugestões subjetivas que, quando bem interpretadas, levam a uma convivência entre seres humanos agradável e coesa, reduzindo as potenciais investidas contra a existência. De uma forma ou de outra, seja por penas eternas no "pós-vida" ou por ciclos de reciclagem, em que cada volta é um período no planeta passando por tudo novamente até que se aprenda a seguir conforme você deseja, há uma legislação divina não declarada a ser seguida, sob o risco de mais dor e padecimento. No corpo ou na pretensa alma. Para quê? Qual o ponto? Atingir a plenitude? Para quê, novamente? Para sermos mais próximos de você? Ou seja, somos gerados por você para sermos como crianças testadas a todos os momentos, sob o olhar rígido do tutor, até que se aprenda a ser como ele? Concebidas com possibilidade de serem punidas dolorosamente por desvios? Para, no final, virarmos esse ser tão ensimesmado que você é? Você acaba de levar ao último grau o sonho de todo ditador.

Percebe como não estou sendo leviano aqui? Não vim espernear e xingar, como um mal-educado raivoso que reage ao redor com injúrias aleatórias para simplesmente espalhar o rancor que carrega dentro de si. Vim comunicar a você que, sob risco de danação eterna, a começar com este exato momento em que escrevo, ou podendo regressar para esta zona de flagelo infinitas vezes, não me curvo. Brado como o pequeno subjugado, cuja atitude não muda a rota das coisas, mas que se atém às próprias convicções.

E se você é tão onipotente assim, fico aguardando, pelo tempo de vida que você me deu, que você envie uma mensagem (mesmo que através de alguém) sem rodeios, metáforas e explicações abstratas de interpretações mil, que desmonte os pontos que defendo neste texto. Caso contrário, pelo tempo eterno que você tem, haverá de existir ao menos um ser do qual você dotou de animação e consciência que não dará razão a um ditador sádico, ególatra, irresponsável e infantiloide, apesar de todo o poder que detém.

Com agravo,

Sua criatura

Dr. Jacó e Sr. Cândido

Jacó e Cândido passam o dia conversando
Papo tenso, sempre
Cândido é o mais forte
Mas Jacó é mais sociável
E é este que sai à rua

"Não é possível deixar que te vejam, amado amigo.
Não te entenderiam!",
Insiste Jacó em dizer a Cândido
Cada vez que este protesta por liberdade
E acaba, inconformado, quebrando tudo lá dentro

Jacó queria que ele compreendesse...
Cândido não quer "compreender"
Cansou de tentar "compreender"
Foda-se
Ele só quer ser, não "compreender"

Jacó observa Cândido extravasar sua raiva
Sem interferir, apenas a sofrer pelos três:
Por si, pelo amigo e pelo dono da carceragem em destruição

Respirar ajuda, chorar não
Da janela, o tal dono da prisão observa
E se pergunta:
"É melhor lidar com o estrago de Cândido
Aqui dentro ou lá fora?
Será que o prédio aguenta?
Ou será que, na multidão,
Alguém recolherá os pedaços do que sobrar
Enquanto a maioria foge atormentada?"

Acalme-se
Tudo isso vai acabar
Cedo ou tarde, vai acabar
Morto Jacó ou morto Cândido
Uma hora tem que acabar
E quem tem medo da morte?

Eu tenho

Bons.tapas

Eu.leio.também

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