Há um ano - réquiem

Há um ano, uma alma deixava este mundo e levava junto o chão de muita gente. Alguns seguraram na borda do que sobrou, outros deixaram o corpo cair de forma inconsequente no buraco que se abriu. Eu não estava sobre o cadafalso, mas conhecia uma garota que estava.

Por fora sempre forte, ela gritou e pulou a tempo de se salvar, mas não se deu conta que algo caiu no vão infinito atrás de si, irrecuperável. Seus olhos me pediram desesperadamente por ajuda ao aterrissar do salto, mas eu, cego, não os vi. Tateando no nevoeiro da absoluta miopia, toquei seu braço por acaso e aquela mão fria e suada de medo se agarrou a mim sem dizer uma palavra. Buscava um apoio para se colocar de pé e se escorou na primeira coisa que foi capaz de achar.

Assim que firmou as duas solas no chão, ela passou a se tatear com vigor, como quem procura a chave do carro em todos os bolsos da calça e da jaqueta. Sentia falta de algo, mas não sabia o que era. Olhou para o chão e traçou o caminho com os olhos de seu local até o abismo aberto a alguns metros atrás de si. Eu ainda estava atônito, sem capacidade de ação. Assistia aquilo sem lhe assistir.

Depois de respirar fundo duas vezes, ela se deixou dobrar sobre os próprios joelhos e chorou. A dor do entendimento vazava aos rios pelos vales de seu rosto, enchendo o mar da saudade. Ela percebeu o que caiu no breu lá atrás.

Há um ano, minha namorada perdeu uma parte de si e só depois de muito tempo eu percebi que ali, naquele instante, eu perdia uma parte de mim também.

Os muros do castelo

Renato foi andando até a casa de Alice, um trajeto que não fazia há meses. Conhecia o percurso de olhos fechados, pelo que estranhou algo diferente no trecho que percorreria ao estender a vista para o horizonte onde deveria estar a morada da moça.

Algumas dezenas de minutos a mais seguindo pela trilha e viu o que era: um muro. Alto, robusto, cinzento, aparentemente construído sem pressa, ele cercava qualquer acesso possível à residência que ele costumava visitar com frequência antes. Como aquilo não parecia fazer sentido algum para ele, tratou de se posicionar para escalá-lo.

Afobado e desatento como de praxe, Renato nem se deu conta que enterraria os dedos em pequenos cacos de vidros posicionados estrategicamente para afastar candidatos a homem-aranha. Uma interjeição de dor, um palavrão de susto e um dedo com um corte mínimo foram os únicos reveses da tentativa frustrada de subir o muro.

Não precisou pensar muito para tentar uma solução mais óbvia. "Aliceeee! Aliiiiice!" gritou um par de vezes esperando ouvir resposta para entender o que se passava. Tendo recebido silêncio como resultado, arriscou o famoso "Tem alguém aí?" e quase prontamente teve de volta um "Vai embora!" da voz inconfundível de Alice.

- Meu Deus, o que houve?

- Você não sabe o que houve? Você jura que não sabe o que houve?

Não, Renato não sabia. Na verdade não se lembrava, mas preferiu o silêncio a outra agressão verbal.

- Você nem reconhece essas pedras, então? - indagou ela.

Foi aí que o rapaz parou para olhar de perto e com calma o muro em si. No primeiro piscar, viu o que já tinha visto, uma construção sólida e impenetrável que se erguia a sua frente. Só precisou de um segundo piscar para notar que havia algo familiar naquelas pedras. Aproximou-se com cautela e a familiaridade se explicou com um estalo em sua cabeça: eram as pedras que ele há tempos tinha levado até ela para construírem um castelo e viverem felizes para sempre.

Rabiscadas nelas em piche com a letra do próprio Renato, frases como "somos muito diferentes", "somente amigo", "eu primeiro", "quer que eu vá aí" e tantas outras se espalhavam por todo o paredão. Seus erros foram esfregados em alfabeto preto pelo perímetro que os olhos tocavam. Doeu bem mais do que a tentativa de escalada.

Em silêncio, o rapaz refletiu sentado no gramado, observando aquilo tudo. Não havia possibilidade de derrubar o muro a força pois poderia desmoronar sobre Alice e sua casa. Escalar já fora descartado. Ir embora não era uma alternativa.

Ele, então, deitou no chão olhando para cima e parou para pensar. De repente, uma nuvem cinzenta traiçoeira chegou sem aviso e derrubou uma enxurrada sobre Renato, que nem se mexeu. A água que escorria pelo seu rosto, contudo, o preencheu com uma ideia.

A primeira coisa que fez foi tirar uma foto de cada frase que havia ali. Guardou todas, como memória que persiste não para afligir, mas para ensinar. Em seguida, tirou a camiseta e começou a esfregar sobre cada uma delas, sem pressa, aproveitando a umidade do muro e do tecido. Pouco a pouco, foi apagando aqueles textos pesados do muro como quem expia seus pecados, às custas de dor na mão e de puir a vestimenta.

Demorou muito e ficou exausto, mas Renato não desistiu nem reclamou. Só chamou a garota novamente quando tudo estava definitivamente limpo.

- Alice! Agora eu vejo, vejo tudo! Me perdoe!

Ele ficou estático olhando para frente aguardando ouvir a voz dela e quando estava prestes a se pronunciar novamente ela falou:

- Aqui em cima!

De alguma forma, ela subiu no muro por dentro e se sentou sobre a beirada. De onde estava, esticou o pescoço e reconheceu a mudança que o rapaz havia realizado na face externa da parede. Sem introdução ou maiores explicações, chegou concluindo:

- Ainda assim, pena que é tarde demais!

Virou-se para o lado de dentro e desceu como se apoiada em uma escada, até sumir da vista do rapaz.

Dolorido e desesperançado, ele deixou que a tristeza tomasse conta de seu corpo. Não chorou; não se permitiu chorar. Preferiu recostar no muro, sentar-se e cantar todas as músicas que conhecia de cor que o faziam lembrar dela. Adormeceu entre desafinos e versos de desalento.

Uma mão o sacudiu em algum momento antes de escurecer e ele abriu os olhos perdido, aquele instante em que se acorda sem saber onde onde está, a cabeça virando de um lado para o outro procurando um referencial que dê orientação. Parou quando encontrou o rosto de Alice.

Ela estava de pé ao seu lado, de mão esticada na sua direção oferecendo apoio para ele se levantar. "Venha", disse, sem completar com mais nada que falasse para Renato o que acontecia ali. O muro estava desmontado quase totalmente, sem sinal de força bruta. De resquício, apenas um pequeno parapeito de pouco menos de um metro de altura.

- Se você ainda quer erguer um castelo comigo, deixe as frases como estão: apagadas, mas não esquecidas.

O rapaz não quis entender. Sabia que para continuar com sua felicidade, bastava carregar a primeira pedra, colocá-la no chão no lugar certo escolhido por ambos e buscar a próxima. E assim ele fez.

(sorriso incontido)

Aí eu sonhei com ela.

E estava tudo bem.

Aí eu acordei.

E ela dormia do meu lado.

Esperança renovada

E no dia em que a NASA encontrou indícios de água em Marte, eu encontrei indícios de amor onde antes parecia não haver mais traços de flor.

Há um ano

Há um ano, em uma noite clara como a de hoje, colunas iluminadas de água subiam e desciam empolgadas, fazendo o papel de dançarinas sobre o palco de espelho d'água que o lago propiciava. Indiferentes aos expectadores, as bailarinas ainda assim enchiam de alegria os olhos deles.

Em volta do lago, as árvores contemplavam o baile. Ao sabor do vento leve daquela noite, elas mexiam apenas as folhas altas de suas copas, semelhante aos fios rebeldes de cabelos penteados que se desprendem a qualquer brisa leve. Particularmente, meia dúzia dessas donzelas do reino vegetal deixaram de acompanhar a dança das águas e observavam um jovem casal sentado a seus pés.

A moça era uma morena dos traços delicados, que sorria a todo momento entre a dúvida do que estava acontecendo e a surpresa da descoberta, que só gerava uma nova esperança de ser encantada pelo próximo movimento do rapaz que a acompanhava. Os olhos cintilavam desde o momento em que a toalha foi estendida sobre a grama, e o que de dia pareciam duas jabuticabas, naquela noite lembravam duas estrelas de um céu noturno sem nuvens visto em mar aberto. Ela era isso: felicidade e brilho destilados e engarrafados em um corpo feminino adorável.

O rapaz tentava ser notado como líder do espetáculo: fazia as vezes de apresentador, dizendo a ela o que faziam ali; de mágico, tirando de dentro da bolsa que trouxeram uma infinidade de coisas aparentemente desconexas, mas que montaram o cenário mais lindo que as árvores haviam presenciado nos últimos tempos; de palhaço, entretendo a moça, arrancando risos gostosos e sinceros; de ator, fazendo-a chorar e o beijar.

Apesar das aparências, a experiência da observadoras da cena era centenária. Elas podiam sentir nele o medo e a insegurança, mas pautados pela alegria plena. Ele não queria que ninguém percebesse, mas elas puderam constatar como ele tremia. Seu coração, disparado, era quase a orquestra regendo a dança das águas. Mais um pouco acelerado e poderia se dizer que não se tratava de uma orquestra, mas uma escola de samba! Os olhos fixos na garota buscavam aprovação constante e, para sua satisfação, a obtinha em todos os passos.

Os dois trocaram conversas, trocaram promessas, trocaram beijos. Trocaram partes do coração, um guardando o pedaço recebido do outro dentro do prório. Comeram queijo, tomaram vinho, tomaram as mãos um do outro, tomaram-se entre os braços. Amaram, sem saber ou sem querer assumir. Não fizeram amor; amaram, da forma mais pura e sublime.

Se fosse possível para sua natureza, as colunas d'água bailarinas parariam e bateriam palmas. As árvores, derramariam lágrimas de emoção. Os poucos pássaros que sobrevoavam a região, parariam sobre os ombros-galhos delas e cantariam em harmonia. A lua daria uma piscadela de aprovação e as estrelas reluziriam de forma alternada, igual a uma fachada enfeitada de Natal.

Há um ano, eles se deram conta de que estavam namorando.

Coração de menina

Do alto dos seus quase trinta anos, ela se fez pequena, se fez menina, e falou com pureza de coração:

"...é que eu gosto de você!..."

Vi uma garotinha de vestido rosa rendado olhar para cima segurando uma caixinha de sapato infantil docemente adornada com a simplicidade e a falta de destreza que só uma criança consegue ter. Dentro, um coração cor-de-rosa luzia, onde as batidas eras pulsos cintilantes partindo de dentro de um diamante rosado, quase translúcido.

Tremi. Eu não sou digno dessa peça. Sou um colecionador, não um adorador. Essa frágil pedra preciosa merecia um altar a ser visitado diariamente com reverência real, incensos, flores e amor. Os presentes que recebo ficam em estantes na parede principal da sala, à vista de quem passa. Cada um carregam uma história, uma lembrança, uma pessoa e uma tristeza.

Aflito, tomei a caixinha nas mãos e agradeci com um beijo carinhoso na testa dela. Conversamos mais um tempo, enquanto ela aos poucos voltava a ser mulher. Quando a noite terminou de cair, fomos dormir.

Antes que ela acordasse, levantei da cama, me arrumei e parti. Deixei a caixinha com o adorável coração sobre a mesa, aberta, iluminando minha retirada. Em um papel que encontrei na gaveta da sala, usando uma caneta Bic vermelha que estava ao lado do caderno de rascunho, desenhei e preenchi meu coração: rabiscado, irregular, estranho, não-bonito. Logo abaixo, a nota de despedida:

"Você merece muito mais do que esse coração esquisito que tenho para dar. Fico extremamente feliz em ter me dado o seu, mas não sou capaz de aceitá-lo. Dê para alguém que de fato vai cuidar desta joia como ela merece."

Antes de fechar a porta a minhas costas, tirei uma foto do lindo presente recusado para enquadrá-la e colocá-la em um porta-retrato na estante da sala de casa.

O sofá

- Mãe, onde está meu sofá?!

Solta assim, sem contexto, essa pergunta não faz sentido algum. Ela trata o móvel como se fosse uma boneca de estimação, que foi largada no meio da sala depois de alguma brincadeira e não "apareceu" na estante, junto com as outras. Andressa, contudo, tinha motivos para indagar sua mãe dessa forma.

Há 15 anos, mais ou menos na época em que aprendia a desenhar as primeiras letras e ler as primeiras palavras, sua brincadeira favorita era ser a "mãe" da casa. No quintal, arrumava os tijolos que sobraram da reforma da lavanderia e em instantes tinha mesa, sofá, cadeiras e até cama para suas quatro "filhas", Barbies genéricas compradas no centro.

Acordava-as para ir para o colégio, preparava-lhes o café da manhã, levava e buscava as filhas do colégio, dava almoço, dava bronca, dava aulas de reforço, dava carinho, dava amor. Dava gosto de ver a criança se divertindo brincando de ser adulta. A mãe de Andressa, inclusive, era uma espectadora costumaz do teatrinho. Da cozinha, no meio dos afazeres, às vezes até esquecia a torneira da pia aberta enquanto se distraía observando a filha pela janela, sorriso satisfeito nos lábios.

Quando seu marido recebeu uma promoção no serviço e resolveu trocar os móveis da sala, a mulher nem hesitou ao doar o sofá velho para a filha, colocando-o na parte coberta do quintal e dizendo que ela podia brincar com ele. O brilho nos olhos da menina ao visualizar seu mais novo objeto de diversão seria capaz de iluminar a mais escura das cavernas, de tão cristalino e puro.

Inicialmente, a casa passou a ser ali. Ela anunciava a todos os visitantes, familiares e quem quer que fosse visitá-los o que havia ganhado da mãe e contava que ela e sua "filhas" haviam saído de uma casa e ido para um apartamento "bem mais bonito, não acha? Tem vista até pro clube e pra rodoviária!".

Um pouco mais madura, parou de brincar de casinha daquela forma, mas o sofá passou a ser a loja do shopping que visitava com as "amigas" (as filhas velhas e surradas foram substituídas por bonecas mais novas e de visual moderno). Percorria lojas de sapato, experimentava roupas, comprava maquiagens e terminava na praça de alimentação com McDonald's e risadas.

Na fase seguinte, as bonecas pararam de sair da estante e o sofá virou refúgio da pré-adolescente, que trazia as colegas de classe (desta vez as reais) para fazer trabalho em casa e invariavelmente terminavam ali, falando sobre tudo e nada, em geral todas ao mesmo tempo.

Daí para local de estudos e leitura, a passagem foi natural. Largada ali em todas as posições que se possa imaginar, ela se alternava entre os enfadonhos livros do colégio e as revistas teen, com pôster e quiz sobre o galã jovem do momento.

Poucos sabem, mas aquele sofá também foi testemunha do primeiro beijo de Andressa. Depois que terminaram a maquete que a professora de história tinha pedido, ela e Samuel ficaram conversando no sofá por quase uma hora, até o menino tomar coragem de anunciar o que todo mundo já sabia e pedir o beijo, prontamente aceito pela garota enquanto as bochechas queimavam vermelhas de vergonha.

O sofá já foi ombro amigo em desilusões amorosas, confidente dos segredos mais escuros, divã para dúvidas quase existenciais, repouso para um corpo de ressaca após uma noite de balada e até cama, quando Andressa esqueceu de levar sua chave de casa ao sair, voltou de madrugada e, por medo da reação da mãe ao ser acordada àquela hora, pulou o muro e se encolheu sobre seu amigo acolchoado.

Portanto, ao chegar do estágio naquele dia, não foi sem sentido a pergunta da jovem quando não encontrou o sofá no mesmo canto que ocupava havia uma década e meia. A mãe explicou que o sofá estava velho, sujo, com o braço quebrado, tinha três rasgos horrorosos e fedia. Sinceramente, quem o visse pela primeira vez concordaria plenamente; o tempo também havia usado o sofá e deixado suas marcas.

Pula-se aqui a parte da história em que Andressa protestou. Diga-se apenas que não usou seu vocabulário mais polido. Correu para o quarto e se afundou na tristeza sobre a cama, só para sentir mais falta do sofá ao perceber que havia perdido até seu espaço favorito de lamentações.

Andressa havia ficado incompleta e não fazia questão de esconder. Passou os dias seguintes com os ombros caídos, sorria menos, falava menos e desconversava se alguém perguntasse o motivo da mudança de postura. Ia trabalhar sem vontade e de lá não queria voltar para não se deparar com o quintal vazio.

Depois de uma semana e meia de desânimo, a jovem começou a se conformar com a situação. Chegou a considerar comprar outro sofá, mas até assim sentia-se traindo o velho e gasto amigo.

Sábado pela manhã, o segundo fim de semana sem o móvel, a mãe de Andressa foi acordá-la bem cedo. Disse que havia preparado um café da manhã especial para ela "ficar mais animadinha" e queria que o tomassem juntas. Desmotivada, mas tocada com o gesto da mãe, ela aceitou a proposta e desceu, seguindo-a.

Ao entrar na cozinha, a mulher olhou para a filha e pôde enxergar um brilho no olhar que só havia visto há quinze anos. E aquele par de faróis de emoção que se plantou no rosto de Andressa apontavam para o lugar onde seu sofá não havia estado nos últimos dez dias. Não havia, até aquele momento.

Lá estava ele, totalmente reformado. Se alguém fosse comparar uma foto do objeto que fora levado com este que ocupava o lugar agora, dificilmente identificaria como a mesma peça de mobília. Mas Andressa não tinha dúvidas: o tecido era novo e limpo, o braço tombado para fora foi colocado no lugar e o enchimento fazia um volume de que ela não se lembrava. Entretanto, um amigo de longa data que corta o cabelo e troca de roupa, mesmo que passe anos afastado, ainda assim é reconhecido instantaneamente.

- Minha filha! Se eu soubesse como você passaria os dias, teria te avisado da surpresa que eu e teu pai queríamos te fazer! Teve uma hora em que ele insistiu para que eu te contasse e eu até cogitei fazê-lo, mas fiz melhor em segurar o segredo e poder testemunhar essa cena linda...

Sim, realmente era uma cena linda! Andressa beijou o rosto da mãe bem demorado, correu para a sala e beijou a testa do pai, que até ficou meio sem reação, e voou para o sofá, jogando-se com tudo sobre ele. Esparramou-se de costas, jogou um pé sobre o encosto e outro estendeu o mais longe que pode, no mais próximo possível que se dá pra adaptar um abraço àquele tamanho todo.

A mãe desistiu do café da manhã. Voltou-se para a pia com louça suja, abriu a torneira e contemplou pela janela, distraída e de sorriso satisfeito nos lábios, a alegria da filha.

(suspiro profundo)

Aí eu sonhei com ela.

E estava tudo bem.

Aí eu acordei.

Fantasma

No meio da noite eu acordei apertado para ir ao banheiro. Odeio quando isso acontece! Abri o olho, afastei as cobertas de cima do corpo e, ao mesmo tempo que me pus sentado na cama, abri os olhos. Só aí notei que havia alguém me observando. Um fantasma.

Na hora eu me assustei com a presença inesperada, mas nada mais do que aquele pequeno espanto de quando uma criança te pega desprevenido na curva do corredor com o típico berro que só elas sabem dar. Depois desse meio segundo nos olhamos fixamente, olho no olho. Não sei dizer como sabia que não era um assaltante (vivo) ou alguém querendo meu mal (vivo ou morto). Sei que não senti ameaça emanando do espírito, só um pequeno incômodo de como me fitava profundamente, mas sem nenhuma expressão no rosto.

Resolvi ignorá-lo e fui ao banheiro, despreocupado. Ao abrir a porta, lá estava ele dentro do box. Me olhando. Fixamente.

A propósito, é horrível relaxar para mijar com alguém te olhando daquele jeito. Acho que nunca tinha me concentrado de fato para conseguir urinar.

Voltei para o quarto e a criatura estava lá de novo, na mesma posição em que a vi da primeira vez. Estática, a não ser pela cabeça e pelos olhos, que me seguiam. Deitei, me cobri e virei de costas para aquilo. Como há muito não acontecia, demorei a pegar no sono, em um misto de desconforto pelo Big Brother sobrenatural e a dúvida do que queria.

De manhã cedo, ainda lá. Enquanto me arrumava para trabalhar, ainda lá. No ônibus e no metrô apertados, lá. Atrás de mim enquanto eu executava minhas tarefas no escritório. Ao lado do meu colega, quando ele se sentou na minha frente para almoçarmos. E até o fim do dia assim.

Ele não andava, simplesmente aparecia no novo cenário para onde eu ia, sempre a me observar, inerte. Teve até certa parte do dia em que pensei que ele se tornaria paisagem, como aquele quadro que fica tanto tempo na parede que você nem se dá mais conta que ele está lá. Estranhamente, minha mente fazia questão de me lembrar do fantasma a todo momento em que eu ameaçava esquecer que ele estava ali.

Assim foi por dias. Vários. Às vezes até em meus sonhos. Eu já nem sabia se era ele ou minha cabeça pregando peças.

Até que ele se expressou. Aliás, ela. Esqueci de comentar, era o espírito de uma mulher. Eu tinha a sensação de que a conhecia, mas não sabia dizer de onde. Ela se expressou quando eu abracei uma menina em uma festa e a beijei. Ela piscou. Uma piscada demorada, ao menos para o tempo normal de uma piscada. E foi como se tivesse disparado uma espingarda de sal grosso na direção do meu peito, que sentiu aquele impacto disperso e começou a arder muito depois. Ela ocupava todos os espaços da minha cabeça enquanto os lábios da moça real ocupava os espaços do meu corpo. Eu já não saberia dizer mais qual das duas beijava e preferi me embebedar para, se não afastá-la, ignorar o fato de estar fazendo a mais absoluta confusão entre realidade e fantasia perturbada.

A moça com quem estava na festa me convidou para ir a seu quarto de hotel e, sem condições de avaliar com critérios o que estava fazendo, aceitei prontamente. Não sei dizer como cheguei lá, porque apenas tenho flashes do restante da madrugada.

O quarto era amplo e bonito, em se tratando de um quarto de hotel. A cama era confortável e, deitado de costas, lembro de um corpo nu feminino vir por cima do meu, largado de costas ali. A fantasma observava tudo, também nua, sentada na beirada do colchão. A menina controlava a ação com maestria, bastante à vontade em se satisfazer comigo bêbado. Era tudo meio nublado, interrupto, faltando pedaços. Até eu sentir três mãos me alisarem. Quatro em seguida.

A fantasma estava em cima de mim, e a garota ao meu lado. Eu acho. Não sei. Uma sorria e a outra gemia de prazer. Ela me puxou e se deitou, me pondo por cima. Enquanto ela me abraçava nas costas, roçando os seios em mim e falando besteiras ao pé do meu ouvido, ela por baixo, me incitava a continuar a transa. Nada ali fazia sentido. Era tudo tão real quanto o sonho em que você cai de um prédio alto e sente o frio na barriga de verdade. Acorda com aquela sensação e pode jurar que aconteceu, se não fosse o fato de estar são e salvo em sua cama, suado no meio da noite. Em algum momento disso, eu gozei e dormi.

Na manhã seguinte, só havia uma mulher comigo. A real. Eu me vesti e saí, e se ela me viu ir embora, não esboçou reação alguma. Não trocamos telefone, nem beijo de adeus; provavelmente nunca mais nos veremos. A fantasma, surpreendentemente, também foi embora. Também nunca mais a vi. Saí daquele hotel mudado. Estranho. Apaixonado. Pela fantasma.

Nascimento

Hoje eu vi uma mulher nascer: De contos e saudades - Eu

Ode à autodestruição

Quero te tocar com meus lábios
Apoiar levemente e sentir seu sabor
Doce ao primeiro encontro
Depois só o amargo

Quero te sentir nos meus dedos
Delicado
Quente
Firme e indiferente

Quero sentir seu cheiro
Saber que ele vai ficar em mim
Por um bom tempo
Só ele, mais nenhum

Te quero no meu peito
Tirando meu ar
Me deixando tonto
Sem prumo, sem rumo

E que nosso encontro não dure mais
Do que uma dezena de minutos
Que você se vá com o vento
E não deixe saudades

Para que eu reflita
E entenda o erro que cometi
Ao te desejar, proibido
Já que só quer me matar

Hoje eu vou fumar

Caim e Abel

Adão e Eva tiveram um filho e lhe deram o nome de Caim, aclamando: "Tivemos um filho homem com a ajuda do Senhor."

Pouco tempo depois, antes de Caim começar a andar, Eva deu à luz Abel. Uma vez em idade de laborar, Abel tornou-se pastor e Caim, lavrador.

Adão ensinou a seus filhos a arte de ofertar frutos do seu trabalho ao Senhor, como forma de adoração e pedido de perdão, fortemente influenciado pelo remorso da expulsão do Éden. Caim oferecia frutos da terra e Abel, por sua vez, imolava os primogênitos do seu rebanho e os queimava com suas gorduras.

Eis que o Senhor olhou com agrado para Abel e sua oblação, cheirosa e atraente, mas não atentou para Caim nem para seus dons, que crepitavam sem exalar. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. Sentado em frente ao altar, vendo as feições satisfeitas de Abel e se sentindo culpado por odiá-lo, o irmão mais velho lembrou-se do dia em que sua mãe lhes contou pela primeira vez sobre o Éden e de como ela e seu pai haviam sido expulsos de lá.

Eva, contudo, avançou na história somente para Caim. Na ocasião, ela lhe dissera que Deus fazia de tudo para dificultar a vida dela e de seu pai após serem despejados do Jardim. E mesmo assim, Adão continuava a adorá-lo na esperança da readmissão. Cabia a ela segui-lo, culpada que se sentia por ter cedido às provocações da serpente.

Um século havia se passado, continuara, e tanto o hábito da adoração quanto a crença na redenção permaneciam firmes em Adão. Com o nascimento do primogênito, Adão estava certo de que consagrá-lo ao Senhor comoveria seu coração divino. Agradeceu pelo filho homem que tivera e louvou. Deus, entretanto, tinha outros desígnios; se manteria na ofensiva ao casal.

Eva encerrara a história contando que, em uma ironia, quase uma brincadeira com as palavras do primeiro homem, o Senhor fez com que Caim não se comportasse como o homem que ele criou do barro, mas como a mulher que ele gerou da costela. O primeiro filho do primeiro casal seria afeito a Eva, se aprazeria em cozinhar e se enfeitar. Seria algo diferente. Nem homem, nem mulher, seria uma prova viva da permanente insatisfação de Deus com o casal. Quando já havia alterado a essência de Caim, Ele contou a Adão o que fizera, que contou a sua mulher. Ela não soubera dizer, na época - e é provável que não saiba ainda - o porquê de Deus lhes ter contado.

Desde esse dia, Caim já não era mais o mesmo. Tinha ficado evidente para ele o porquê de seu pai e seu Deus preferirem Abel, mesmo que Eva o tratasse com mais amor. Passou a fazer suas obrigações com mais pesar, deixou de se arrumar tanto, tentando em vão passar um ar mais viril como era o de seu irmão, vivia cabisbaixo e recluso. E segurava o choro toda vez que suas ofertas ao Senhor não eram recebidas com atenção.

Fato é que Deus se arrependeu da aberração que criou, mas não falou para ninguém. Não voltou atrás para não aliviar o peso que impunha sobre Adão e Eva, ao custo de fazer a vida de Caim miserável. Ver aquele rapaz grande, forte e barbado andar com trejeitos femininos, pentear os cabelos demoradamente, bem como o de sua mãe, além de ter que ouvi-lo afinar a voz para tentar ocultar o grave herdado do pai, isso era como insulto aos próprios olhos. Mesmo sendo o causador da situação, Ele se desgostava de Caim, e não conseguia esconder isso ao receber as ofertas.

Absorto em seus próprios pensamentos, Caim não se deu conta de que a fogueira já havia se apagado. Abel chamou-lhe para voltarem para casa, mas ele preferiu ficar mais um pouco ali, sozinho.

Com a saída do irmão mais novo das cercanias do altar, o Senhor falou: "Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante?", como se Ele mesmo não o soubesse. "Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se precederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas tu deverás dominá-lo."

Ao fim do monólogo, Caim retirou-se dali com pressa, sem responder. Alcançou então Abel e lhe convidou: "Vamos ao campo." Logo que chegaram, o irmão mais velho acertou as costas da cabeça do outro com um pedaço de pau, lançou-se sobre ele e o matou.

Assustado com o que fora capaz de fazer, ele correu sem rumo, apenas para se afastar dali. Ouviu o rugido de Deus ainda com o coração disparado: "Onde está seu irmão Abel?". "Não sei! Sou porventura eu o guarda do meu irmão?", respondeu. Em tréplica, escutou: "Que fizeste! Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por mim desde a terra. De ora em diante, serás maldito e expulso da terra, que abriu sua boca para beber de sua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares, ela te negará os seus frutos. E tu serás peregrino e errante sobre a terra."

Desesperançoso e incapaz de prender o choro, absolutamente ciente da gravidade do que fizera, arrependido de ter descontado toda sua frustração em Abel e, em última instância, a mais infeliz das criaturas sobre o planeta, Caim suplicou: "Meu castigo é grande demais para que eu o possa suportar. E não falo de ter tirado a vida de meu irmão. Falo de ser instrumento da tua raiva contra meus pais. Eu queria ser como meu pai e seu filho, mas só sei ser uma filha para minha mãe. Nunca mais pude mostrar contentamento em viver ao descobrir o que fizeste comigo. Todavia, parte meu coração saber que nem o Senhor me aceita como me criou, como sou."

Continuou: "Eis que me expulsais agora deste lugar, e eu devo ocultar-me longe de vossa face, tornando-me um peregrino errante sobre a terra. O primeiro que me encontrar, matar-me-á."

Sentindo todo o amargor das palavras de Caim, Deus refletiu por um tempo. Respondeu então a Caim: "Não! Aquele que matar Caim será punido sete vezes". O Senhor, então, pôs em nele um sinal, para que, se alguém o encontrasse, não o matasse.

Caim retirou-se da presença do Senhor e foi habitar a oriente do Éden. Conheceu e deitou-se com homens e mulheres durante sua vida, gerou prole e morreu naturalmente, aos oitocentos e três anos. Nunca mais falou com Deus, nem foi chamado por Ele. Seus sinal, contudo, é visível em seus descendentes até os dias de hoje, alvo de ira da intolerância dos filhos de Deus.

Gênesis e o Jardim do Éden

No princípio, Deus criou o céu e a terra. E disse Deus: haja luz! E houve luz. E viu Deus que era boa a luz. Foi a tarde e a manhã do primeiro dia.

Nos três dias seguintes, ele criou os céus, a terra, os mares, o sol e a lua, além de e toda sorte de vegetais e árvores existentes. Viu que tudo aquilo era bom.

Ao quinto dia, criou os animais que vivem nos mares e nos ares e no sexto criou os que andam sobre a terra, incluindo o homem, dando a este o domínio sobre toda os outros. Deu-lhe também domínio sobre as plantas, que lhe serão alimento. Contemplou toda sua obra, encerrada naquele dia, e viu que tudo era muito bom.

Deus descansou no sétimo dia.

Pouco tempo depois, em conversa com o homem, que havia dado nome a todo ser viviente e decidira dar-se o nome de Adão, Ele percebeu que não havia ajuda que lhe fosse adequada para cuidar de toda a criação. Então Deus mandou-lhe um sono profundo. Enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fez a mulher. Tendo descoberto um ao outro, Adão chamou-a Eva e o par passou a se querer bem e viver junto.

Certa vez, a serpente, o mais astuto de todos os animais que o Senhor tinha formado, disse à mulher: "É verdade que Deus proibiu vocês de comer do fruto da árvore do meio do jardim?". "Sim!", respondeu, "Ele nos advertiu para que não tocássemos nem comêssemos de seu fruto para que não morramos."

"Oh, não!", tornou o animal, "Vocês não vão morrer. Deus bem sabe que, no dia em que comerem desse fruto, vocês serão como Ele: conhecedores do bem e do mal. Vocês serão deuses!"

Acariciando o tronco da árvore, ela aproximou os dedos do fruto proibido vagarosamente. Sem tocá-lo, todavia, ela desviou a mão e, em um movimento certeiro, agarrou a serpente pelo pescoço com firmeza e a trouxe bem próxima a seu rosto.

"Não ouse contradizer Deus!", Eva disse, sem erguer o tom de voz, sem manifestar qualquer sentimento ruim, apenas seguindo o que Ele havia recomendado. Atirou o animal ao chão e pisou em sua cabeça, enquanto Adão, que viu a cena toda de longe, chegou com um pedaço de pau e a golpeou com vigor, tirando a vida da serpente.

Poucos instantes depois, ouviram o barulho da aproxiamação de Deus e o procuraram com o olhar, vindo a encontrá-lo com a vista levemente desapontada. "Por que fizeram isso?", indagou ao casal. "A serpente queria que eu fizesse algo que o Senhor nos havia proibido, então achei por bem tirar-lhe a vida.", disse Eva. "E eu ajudei, ao ver o que se passava a distância e vindo em sua ajuda.", complementou Adão.

Então Deus falou: "Vão, e não retornem nunca mais a este pedaço do Éden, que ficará manchado com a marca de teus atos." Eles obedeceram e foram perenes, aproveitando o jardim, adorando o Senhor e vivendo em harmonia.

Deus, entediado com aquele marasmo, não tardou em destruir tudo e recomeçar a criação, tomando providências para que, desta vez, a serpente tivesse êxito em seu intento.

Bons.tapas

Eu.leio.também

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