Como quem não quer nada

Te rapto
Rápido
Dormindo
E você não vai nem perceber

Te envolvo
Devolvo
No ninho
Então você vai me querer

Te acordo
Com todo
Carinho
E você vai achar que sonhou

Te abraço
Amasso
Um pouquinho
Até ver que você se acanhou

Sem saber
Sem querer
Já é minha
Faz tempo que eu era só seu

Assim
Sem fim
Viveremos
No compasso que o tempo nos deu

Procurando meu orgulho

Me veja
Me beija
Me deseja
Me sente

Mente
Me aumente
Me elogie
Me anime
Me use
Me abuse

Aproveite
Me domine
Me recrimine
Me persiga
Me siga
Me anule
Me apague
Me esmague
Me estrague

Me esqueça
Me largue
Me jogue
Nem pense
Me dispense

Me resgata
Me carrega
Me cega
Me limpa
Me exiba
Me deprima
Me troque
Me enforque
Me deixe lá
Apodrecendo
Mas me deixe em paz

Foi um prazer conhecê-la

Sandra caminhava distraidamente alguns passos a frente de Nilton, que carregava uma mala rosa suja, grande, pesada e desajeitada. O rapaz não parecia ter dificuldades em levar a carga, apesar do caminhar não ser absolutamente fluido; ajeitava a bagagem de um ombro para o outro a cada dúzia de passos e inclinava o tronco para fazer contrapeso, ainda que não trouxesse no rosto qualquer expressão de dor ou desconforto.

De fato, o que o rapaz trazia era um semblante abatido, quase triste, contrapondo a leveza e indiferença da menina que caminhava a sua vista. Em um cruzamento, em que ela foi obrigada a aguardar para atravessar, Nilton a alcançou e repousou a mala no chão. Fixou o olhar nela e, sem dizer nada, viu que Sandra olhou para trás e sorriu. Era um belo sorriso. Ela não se aproximou, permaneceu em silêncio a um ou dois passos de distância dele, no exato ponto em que pararam aguardando o semáforo para pedestres abrir. Voltou o rosto novamente para frente e falou "Abriu!", como se desse ordem para que a manada de pessoas que também aguardava junto iniciasse a marcha entre as calçadas.

Nessa dinâmica de mínima ou nenhuma interação, caminharam por pouco mais de vinte minutos até perto do destino final, quando a moça desatou a falar. Falava consigo mesma em voz alta conferindo mentalmente o que a mala continha, achando que assim teria certeza de que não esquecera nada. Como sempre, citou informações constrangedoras apenas para testar o nível de acanhamento de Nilton, itens como "consolo", "fio dental: dos dois tipos", "absorvente interno" e "sutiã que dá peitão". Ele, acostumado com esses surtos de quem quer chamar atenção, nem corado ficou. Sorriu, entendendo que se tratava do jeito dela para quebrar o gelo.

Ao entrarem na rodoviária, o nível de ruído aumentou sensivelmente, e ele não conseguia mais distinguir se entre aqueles sons a lista dela continuava a ser detalhada. Passou a atentar ao jeito de andar daquela perna de coxa grossa e canela fina, um caminhar que ficou mais curto e com maior tempo entre uma pisada e outra. Finalmente ele fora capaz de notar alguma relutância na menina desde que foi encontrá-la na porta de sua casa.

Desceram a escada rolante sem se falar, mas ao menos ela ficou de frente para ele. Coçou as costas desajeitadamente no minúsculo trajeto do equipamento, pelo que Nilton sorriu e tomou um beliscão gentil ao chamá-la de macaca albina. Após o beliscão, um abraço ligeiro, interrompido pela chegada ao pavimento inferior.

Na plataforma de embarque, o motorista já tinha ligado o ônibus e estava recolhendo as malas de viagem dos demais passageiros, quando ele sugeriu com o corpo que devolveria o pacotão rosa naquele instante.

- Ah, já trouxe até aqui, então leva até o bagageiro, né! - Sandra começou a se virar para seguir ao ônibus quando Nilton a segurou pelo braço e a fez virar, sem fazer força.

- Então é isso? - disse, antes de soltar o braço dela.

- Isso o quê?

- Nunca mais nos veremos, né?

Pela primeira vez desde que se conheceram, ele a viu ficar sem graça e de uma forma tão desconfortável que seu impulso foi lhe dar outro abraço, desta vez mais longo, daqueles que afagam e limitam a respiração, e a pessoa se entrega completamente sem se importar com a sensação de sufocamento. Entre seus braços, o corpo dela segurou um soluço e o queixo em seu ombro demonstrou que ela engolia seco. Nilton desapertou o abraço só um pouquinho para olhar em seu rosto e checar se havia um par de pocinhas d'água embaixo dos olhos. Sandra, durona como gostava de parecer, segurou até o fim, trocando o choro por um sorriso gigante e brilhante como só ela conseguia dar. Pôs as mãos no rosto do rapaz e o beijou com um selinho forte e demorado. Afastou os lábios dois dedos e emendou:

- Acho que não, o Walter não me deixaria receber visita lá...

- Então como faremos?

- Não sei.

- Nem eu.

- Deixa assim então. A vida dá um jeito. - concluiu a moça, desatando-se gentilmente dele, pegando a mochila que estava no chão e se virando para levá-la ao motorista, que só a aguardava para fechar o bagageiro do ônibus sem, contudo, aparentar pressa, exatamente como as pessoas de bom coração fazem quando um casal se despede.

Nilton nem se moveu. Semelhante aos demais postes da área de embarque, observou estático sua menina entrar no ônibus sem olhar para trás. Também a viu acomodar-se em sua poltrona sem se voltar para a janela e acenar um tchau. Não tirou os olhos dela um só instante. A última imagem que teve foi a do veículo começar a se mover enquanto Sandra encolhia as mãos para dentro das mangas do blusão e as esfregava sobre o olhos, quando ela finalmente se permitiu soluçar copiosamente a dor da despedida eterna.

De olho em você

Ela não parava de olhar para a minha namorada. Mesmo estando do outro lado do salão, mesmo com pessoas atravessando frequentemente a linha do olhar, mesmo comigo tentando abraçá-la da forma mais evidente possível para mostrar que ela estava acompanhada, aquela moça não fazia nem questão de desviar o olhar. Bebericava seu drink e mirava minha namorada.

Ela se vestia de um modo bem alternativo, parecendo aquelas pessoas que gostam de filmes iranianos e rock irlandês. A maquiagem era leve e pouco se destacava na pele clara do rosto. O chapéu de feltro azul escuro cobria parcialmente o corte channel tingido de ruivo. O rosto ficava ligeiramente inclinado para frente enquanto uma mão segurava o copo longo suado e a outra tocava o canudo com apenas dois dedos, pondo e tirando a boca dele vagarosamente entre os goles. O olhar, esse não saía de cima da minha garota.

Quando a garçonete chegou com o bolo e a vela, seguidos pelo "Parabéns pra você" que sufocou as conversas paralelas do bar, imaginei que o constrangimento cessaria. Me dei o direito de esquecer da presença daquela indiscreta por alguns minutos enquanto cantava, batia palmas, abraçava e beijava minha namorada, seguido por todos os nossos amigos que completavam a mesa.

Foi o tempo de distribuir os pequeninos pedaços de bolo que resultaram da divisão do doce entre os presentes, comê-los e ouvir as piadas ruins costumeiras tipo "com quem será" e "quantos ânus você tem agora?", que servem para esfriar os ânimos após a vergonha coletiva de cantar batendo palmas como crianças de pré-escola. Bati o olho onde a curiosa deveria estar e vi um vazio. Ao invés de paz, um terror me tomou: eu tinha perdido um inimigo de vista! Vasculhei o entorno já desistindo de ser discreto, revirando a cabeça e torcendo o corpo inquieto sobre a cadeira. Minha namorada notou e fingiu que acreditou na desculpa esfarrapada que criei na hora.

Só parei de me mexer quando o frio tomou conta da minha espinha e congelou meus movimentos. Paralisado, observei a doida sair do banheiro passando os dedos pelos cabelos curtos e ajeitando o chapéu sobre a cabeça em seguida. Vinha com passos firmes dados por um par de pernas finas envelopadas em um jeans justíssimo. No corpo, uma blusinha branca agarrada, com um decote quase indecente e os seios impedidos de saltar para fora pelo colete escuro que terminava de compor o figurino. Era modelo, bela, magra, alta, esguia e deslizava pelo corredor com suavidade, olhar fixo na minha garota.

Deu oito passos, no máximo nove, e já estava ao nosso lado.

- Como é seu nome? - e ela iniciou a invasão indagando a aniversariante.

- Sara.

- Meus parabéns, Sara! - e seu corpo se inclinou sobre ela com os braços muito abertos e um sorriso lindo e magnético nos lábios.

Para minha surpresa, Sara se levantou e retribuiu o abraço! Abraço longo. Longo... Eterno... Infinito, ainda que até hoje ela jure que durou míseros segundos, como qualquer outro. De frente pra mim, a estranha olhou em meus olhos e eu via a maldade de sua intenção.

Por fim elas se desgrudaram e a intrusa pegou as duas mãos de Sara.

- Felicidades! - o mesmo olhar que ela me dirigiu agora era endereçado à minha namorada. Por fim, virou-se para a porta e saiu.

Ela se foi sem dar nome ou telefone. Sara gostou do abraço e me criticou quando contei toda a história desde a fixação visual. Eu sei que ela queria minha menina para ela! Mas Sara não acreditou em mim. Pior! Sara gostou do abraço...

Ainda não sei

Queria saber fazer poesia
Pra te entregar uma todo dia
E te ver toda contente
Antes de sair da cama

Queria saber fazer poesia
E te ver radiante de alegria
Lendo meus versos rimados
E dizendo que me ama

Queria saber fazer poesia
Juntar palavras com maestria
Poder descrevê-la tão bela,
De vergonha o rosto em chama

Queria saber fazer poesia
Crer que com ela te conquistaria
Mas você nem me conhece
Meu coração só se engana

Queria saber fazer poesia
Com ela encher minha vida vazia
E se ela não te trouxer
Que ao menos me dê fama

Queria saber fazer poesia
Mas como aquele poeta dizia...

Eu sou só mais um garoto imbecil a se repetir

Cantoria

O canto vinha de longe, mas era completamente distinguível dos demais sons que se percebe quando se está no campo. Apesar de ser mais cedo do que costumo me levantar, fiz questão de sair da cama e abrir a janela do quarto para procurar o primeiro pássaro que cantava.

O ranger da janela de madeira precedeu a avalanche de luz matinal que invadiu meus olhos. O turbilhão sensorial, contudo, não foi capaz de afastar a música do pequeno animal mais animado com o começo do dia do que eu. Pelo contrário, o sopro que entrou trouxe mais intensidade e emoção à canção. Fiquei quase meia hora apoiado ali, contemplando de pijamas o nada, o ouvido extasiado...

Assim como começou, a melodia cessou. Tudo o que vi foi um pequeno pássaro azul e branco saindo do alto de uma árvore de copa bem larga e voando na mata para onde os olhos já não o acompanhavam mais.

O dia seguiu. Na chácara do tio desse colega de trabalho ninguém ficava parado: churrasco, música, baralho, piscina, casos contados e risadas, regado a cerveja e alegria. Já perto do momento de ir para a cama veio a ideia. Juntei um pouco de gergelim que achei na cozinha, peguei uns pedaços cortados de mamão que não foram usados na salada de frutas, enchi um bebedor de água, desses de beija-flor, e pus tudo na mesma árvore em que o pássaro estava de manhã. Deitei na cama inquieto, fechando os olhos para lembrar da música incrível que me despertou e abrindo em seguida com medo de não ouvi-la caso fosse cantada cedo.

O plano deu certo! A noite mal dormida valeu a pena quando o despertador da natureza me pôs novamente com os braços sobre a janela e um sorriso contemplativo no rosto. Nem sei dizer quanto tempo durou a apresentação. Só sei que durou o suficiente para eu me apaixonar por um som.

Assim passei o feriado inteiro. Aproveitei tudo o que pude de dia e de noite, mas reservei os minutos preciosos antes de dormir para preparar o prêmio e o agradecimento àquele que me retribuía com a mais bela canção que já tinha ouvido fora de um rádio. Até hoje me lembro da sensação de formigamento do rosto, dos pêlos do braço arrepiando e das milhares de mariposas passeando em minha barriga toda vez que abria a janela. Minutos quase eternos de um sentimento que não sei se há um nome para descrever, pois nunca mais senti algo igual.

O fim dos dias na chácara chegou rápido, apressado pelo dedo voraz do prazer, que empurra o ponteiro do relógio e o faz correr mais veloz que o de costume. Contudo, nem o tamanho da alegria desses dias somado chegou a fazer frente ao tamanho da tristeza de preparar o pratinho da última noite. O coração apertou enquanto picava a manga e os olhos marearam ao encher o bebedor.

Fomos embora no domingo a noite e deixei tudo da mesma forma como nos outros dias. Na segunda pela manhã, após vestir a camisa para ir trabalhar, abri a janela do apartamento e transformei ruas em grama, prédios em árvores e fumaça em cheiro de orvalho. De olhos fechados, relembrei a canção que nunca mais pude ouvir ao vivo, pensando no animalzinho satisfeito com a última vez em que recebeu seu singelo café da manhã.

Passageira

À nossa frente, luzes noturnas da cidade se afastavam

Aos nossos pés, redemoinhos e espuma de água salgada se misturavam

Às nossas costas, milhares de pessoas celebravam ou dormiam

Acima de nós, Deus ou estrelas testemunhavam

Em meus braços, a moça mais bela da viagem

Em seu sorriso, timidez e diamantes brilhando

Em nossos ouvidos, buzinas náuticas dando adeus à costa

Em meu peito, uma bateria tocando no lugar do coração

Em suas bochechas, brasas ardendo e colorindo

Em nossas olhos, o desejo de se encostar

Em minhas mãos, a força para trazê-la com firmeza e tranquilidade

Em seu pescoço, o convite para o abraço

Em meu nariz, o cheiro inesquecível do seu perfume

Em nossas nucas, pelos arrepiados

Em minha boca, sua boca

Em sua boca, minha boca

Em nossas bocas, o beijo

O beijo

Beijo entregue e recebido

Ansiado, realizado, contemplado, encerrado

Em seus movimentos, um adeus

Em minha resposta, um "não se vá"

Em nossa despedida, outro beijo

Um beijo

Um texto

Uma promessa

E apenas meio coração desembarcado.

Precipício em quatro atos

As cortinas fechando sobre minha vista constroem o muro final entre mim e ela. Desde o início, notei a moça da segunda fila que fitava o palco com algo mais do que o olhar de espectador, apesar da insistência das luzes voltadas para o palco em tentar me cegar.

O primeiro ato foi leve, de apresentação dos personagens e de quebra de gelo com a plateia. E já nesse momento, no primeiro encontro de nossos olhos, algo aconteceu. Seu sorriso me prendeu e o brilho do rosto me enfeitiçou, sereia que canta sem emitir som.

O segundo ato escancarou os dramas de cada pessoa da peça, e nós identificamos o nosso. Há quem diga que quando se olha tempo suficiente no fundo dos olhos de alguém é possível ler seus pensamentos. Verdade ou não, algo assim aconteceu quando eu senti que não a veria nunca mais. As angústias do meu personagem viraram garras e se enterram no meu coração, saindo pelas falas decoradas com dor e pesar.

No terceiro ato, meu personagem morreu. Morte sem tragédia, um ataque cardíaco enquanto dormia. Saí de cena. Da lateral do palco, contudo, continuei a observá-la sem ser percebido e vi seu semblante mudar. Ela voltara a ser espectadora e minha morte fictícia parecia pesar sobre seus ombros como se tivesse perdido alguém que fora querido por ao menos meia vida.

Do ato final eu não participei em palco. Tive que ficar reunido com o staff nos bastidores e fiquei só no mundo. Eu não queria estar ali; queria a cadeira B102, a jovem de cabelos ondulados com a cabeça em meu ombro segurando o choro ao presenciar o desfecho de teatro europeu, as mãos dadas com dedos entrelaçados, como se essa ligação nos impedisse de sucumbir à depressão absoluta frente a constatação da efemeridade da vida.

Aí voltamos ao agora em que nos damos conta de que a partir daqui seremos apenas memória um para o outro. Não há solução, não há remédio, não há saída. Assim que esses metros de pano tocarem o solo, ela vai abaixar a cabeça, secar os olhos mareados, suspirar, sair pela porta e, quem sabe, tomar um café. Já eu voltarei para o camarim e escreverei algo triste pra que a força que amassa meu peito pule daqui para o papel e me deixem respirar.

Bons.tapas

Eu.leio.também

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