Carta para ser lida em 2030

Oi!

Eu tenho tanto para falar para vocês... Espero que tenham paciência para me ouvir, hoje e sempre. (porque eu falo muito, vocês vão ver)

Aliás, tenham paciência. Espero que sejam pacientes como eu sou paciente. Isso traz uma série de vantagens e facilita muitas coisas no dia-a-dia, mas pode cobrar seu preço. Se ser paciente ficar pesado, não larguem o fardo. Dividam comigo que eu ajudo a carregar.

Tenham empatia. Tentem se sentir como as pessoas com quem vocês se relacionam se sentiriam com suas atitudes. E se o resultado for ruim, mude sua atitude. Se já aconteceu, peçam desculpas. Empatia e humildade são duas qualidades ótimas para boas pessoas, mas pode cobrar seu preço. Se ter empatia e humildade ficar pesado, não larguem o fardo. Dividam comigo que eu ajudo a carregar.

Sejam honestos consigo mesmos, individualmente. Sempre que possível, sejam honestos com os outros também. A honestidade faz com que o sono fique mais sossegado e as preocupações menos custosas. Vocês vão aprender que nem sempre dá para ser honesto, principalmente com quem é desonesto. Para isso eu ainda não tenho uma sugestão certeira, mas me proponho a procurarmos juntos por uma.

A vida não é fácil. A de vocês vai ser mais fácil do que a de maior parte da população do planeta, mas não quer dizer que vai ser fácil.

Vocês vão sorrir muito. Mesmo! Se depender da gente, de mim, dos seus avós, de toda a família, vocês vão ter muitos momentos para rir. Se fizerem bons amigos, vão se alegrar mais ainda. Se encontrarem outros corações para compartilhar amores, também.

Mas vocês vão chorar, e não estou nem contando o período de bebês. Vocês vão chorar de dor, de tristeza, de raiva, de impotência, por amor... Se quiserem um colo ou um ombro, eu vou estar lá. Com mais de 80 anos, eu vou estar lá. Com netos seus, eu ainda estarei lá. O mesmo ombro, o mesmo colo. Um pouco mais gordo e enrugado, provavelmente. Só não sofram sozinhos. Sofrer sozinho é o pior tipo de sofrimento e espero que vocês nunca experimentes isso.

Estudem muito, sobre qualquer coisa. Estudem e treinem. Matemática, escrita, dança, discurso, geografia, um esporte, sei lá. Ou tudo isso junto e muito mais. Conhecimento abre portas e conecta pessoas. Conhecimento evita que sejamos feitos de bobo. Vamos conversar sobre as descobertas dos seus estudos e treinos: como uma manobra nova deu certo no jogo, como um poema novo mexeu com você, como se deu conta que faz todo sentido do mundo 0! = 1.

Sejam bem-vindos! Espero que eu possa ser tudo o que vocês esperam e precisam em um pai. Amo vocês dois!

Papai

O Quatrilho

A transa foi boa. Raquel estava deitada fitando o teto, ainda ofegante. Ao seu lado e também de barriga para cima, Gabriel olhava de lado para as mechas de cabelo que se espalhavam pelo travesseiro e decidiu enrolar a ponta de uma delas em seus dedos. Ficaram assim por um par de minutos apenas.

- Nossa, preciso de um banho neste calor. - externou ele.

- Vou ver o que o Rodrigo está fazendo, então. Depois tomo uma ducha. - ela respondeu.

A moça vestiu o short do pijama e a blusinha que fora arrancada mais cedo, sem se preocupar com as roupas íntimas. Caminhou do quarto até a sala e encontrou Rodrigo assitindo TV.

- Está vendo o quê?

- Nada específico; estou zapeando. Acabou de acabar A Cor Púrpura. Acredita que nunca tinha visto? Filme triste da porra...

- Nossa, Deus me livre. Vi uma vez só e precisei de um pote de sorvete para curar o ânimo depois. Vai continuar vendo TV depois?

- Sei lá. Alguma ideia?

- Quer continuar Big Bang Theory de onde paramos?

- A Sara não vai se chatear, não?

- Eu assisto de novo com ela depois.

- Fechado. Vou colocando aqui.

- Vou fazer uma pipoca e já sento com você.

Gabriel saiu do banheiro sem se secar por completo. A umidade que ainda cobria levemente sua pele o ajudava a se refrescar. Se vestiu e foi falar com os colegas de apartamento na sala. Encontrou os dois no sofá, Raquel com a cabeça no colo de Rodrigo ganhando um cafuné.

- Gente, vou buscar uma pizza, refrigerante e cerveja. - ele conseguiu a atenção da dupla e continuou, - Alguém quer alguma coisa específica?

- Eu aceito uma cerveja. Duas, vai. A pizza pode ser do sabor que vocês preferirem. - disse Rodrigo.

- Eu quero uma long neck só, para acompanhar vocês. Traz uma Coca de dois litros, pode ser? - Raquel emendou.

- E o sabor da pizza?

- Qualquer coisa com queijo está bom.

- OK. Vou trazer duas pizzas, aí a Sara esquenta no micro-ondas quando chegar do plantão.

Quase ao mesmo tempo, o par que estava em frente à TV concordou com a cabeça.

- Está com dinheiro? - Raquel interpelou Gabriel logo antes de ele sair. - Se quiser, leva meu cartão. A senha é a mesma de sempre.

- Fica tranquila. Pago no VR e lanço na caixinha da casa para a gente acertar. - Colocou seu boné e saiu pela porta cantarolando.

A comida demorou. Quase deu tempo de ver dois episódios seguidos. Mas quando chegou, interrompeu todas as atividades de casa e uniu os três ao redor da mesa. Rodrigo, o mais falador, puxou assunto sobre como estava gostando mais de ler no e-book do que no papel, apesar de ser fã de ter a estante cheia de livros. Daí passaram para tecnologia, decoração, reality shows, futebol e terminaram na velha discussão de se cabia um cachorrinho morando com eles. Gabriel e Sara eram contra. Rodrigo e Raquel ansiavam, mas não o suficiente para comprar a briga.

A louça do dia era dela. Rodrigo foi tirar os lixos para colocá-los na lixeira lá no subsolo. Gabriel aproveitou que estava de bobeira e ligou uma música para preencher o ambiente. Ao fim das atividades, sentaram-se no sofá para mexer no celular enquanto curtiam o som, cada um do seu jeito: Gabriel, apesar de calorento, sentia-se bem quando seu companheiro ficava com a cabeça em seu ombro; Raquel, a exemplo de mais cedo, se esparramou e colocou a cabeça no colo do primeiro, como um gato que pede um afago. Ganhou.

- Gente, estou pingando de sono. Vou me deitar. - anunciou ela depois de um bom tempo que estavam à toa vidrados na telinha que estava palma da mão.

- Vou contigo. - Rodrigo disse.

- Vamos todos então. - falou Gabriel, e os três se espreguiçaram para abandonar os postos que ocuparam por uma playlist inteira.

Raquel precisava de uma chuveirada antes de se estirar na cama. Sentia a pele grudando daquele suor que aos poucos toma a pele depois de um dia abafado. Foi para o banheiro da suíte dos fundos enquanto os dois escovaram os dentes no banheiro da suíte da frente. Com a higiene feita mais rápida, Rodrigo vestiu o pijama e se deitou na cama de casal ali mesmo. Quando Gabriel terminou a sua e se arrumou para dormir, viu o companheiro gostosamente largado no colchão e arriscou:

- Posso dormir aqui com você hoje? A Raquel vai apagar e queria bater papo mais um pouco.

- Aconteceu alguma coisa?

- Não, nada de mais. Só estou meio chateado com o lance do time lá, o Cadu querendo decidir tudo e deformando o que o pessoal todo construiu na amizade ao longo desses anos.

- Ah, cara. Você me contou. Foda... Mas diz aí, você chegou a comentar com ele?

E o assunto fluiu enquanto os dois rapazes deitavam lado a lado.

Raquel saiu do banho, colocou a camisola e foi tomar uma água na cozinha. No caminho, encontrou-os no outro quarto, no escuro, conversando.

- Está tudo bem?

- Uhum. - Ela não ouviu quem respondeu.

- Quer deitar aqui com a gente? A gente se aperta. - Gabriel convidou.

- Não, obrigada. Vou dormir no momento em que encostar na cama. Neste calor, vou me esparramar no colchão do outro quarto então. Gabi, você vai dormir aí ou lá?

- Vou ficar por aqui.

- Beleza, então deixa um recado para a Sara ir lá para o quarto comigo, senão ela vai acabar acordando vocês quando chegar.

-Pode deixar.

Ela se despediu com um beijo nos lábios de cada um deles e se retirou. Depois do copo d'água e conforme esperado, a moça recostou e apagou. Os dois ficaram papeando um bom tempo ainda antes de se redenderem a Morfeu.

Sara chegou cansada do trabalho. O hospital esteve cheio a noite inteira e ela mal teve tempo de relaxar. Viu a pizza sobre a mesa com bons olhos e sabia que fora ideia da Raquel o prato com talheres e guardanapo esperando por ela. Alimentada, foi para o quarto e viu o recado na porta. Sorriu para si mesma. Fazia tempo que não dormia com Raquel e estava com saudade de cheirar seus longos cabelos antes de sair do ar.

Apesar do calor, tomou um banho quente para os músculos destensionarem. Hidratou as pernas, o que fazia questão de fazer todo dia, vestiu uma camiseta velha e uma calcinha agradável de algodão. Deitou-se ao lado da companheira e se ajeitou. Com o o movimento, acordou-a.

- Chegou? Tudo bem no serviço? - A voz sonolenta e grave saia com dificuldade.

- Sim, só um pouco cansativo.

- Dorme bem.

- Você também. - O que foi encerrado com um selinho.

A plantonista encontrou uma posição confortável, puxou cuidadosamente um pouco do cabelo de Raquel e o aproximou do nariz. Dormiu mais rápido do que pode sentir.

Amarelo

Você conhece ao menos três pessoas que já pensaram seriamente em suicídio. Isso é uma afirmação.

Sabe qual é a maior preocupação de quem tem depressão em estágios intermediários? Não transparecer. Não deixar que os outros saibam. Porque não é todo mundo que entende, compreende, empatiza. "É frescura!", "É falta de trabalho, de ter com o que ocupar a cabeça!", "Mas Fulano tem de tudo, uma vida ótima, não tem motivos para estar assim!". E sem saber, quem fala isso mais piora do que ajuda. Aí é melhor esconder mesmo, colocar uma máscara de felicidade e sofrer sozinho.

O depressivo, ao contrário do que o senso comum pode levar a crer, não é só o ser humano triste, enfurnado em casa no escuro, olhando para o nada em silêncio enquanto o dia passa na janela. Esses COM CERTEZA estão depressivos, inclusive pedindo ajuda com o pouco de forças que têm. Mas sabe quem mais pode ter depressão? O ator engraçado, astro de filmes de comédia, chafariz de alegria para a plateia em polvorosa. Descanse em paz, Robin Williams. Aquele líder espiritual que cura a alma de multidões em nome de Jesus, com muita maestria. Deus te guie, padre Marcelo Rossi. O jornalista dedicado, genial, referência para a profissão. Um abraço para Jorge Pontual.

Então, quem sabe aquele seu amigo engraçadão, que de tudo faz piada, que leva a vida leve e sem preocupações não esteja simplesmente tentando fugir do peso que é levar a vida no dia-a-dia? Ou seu primo comilão, orgulhoso de devorar meia pizza em 10 minutos, astro da arte de engolir o que vê na frente, que pode estar descontando as frustrações e fontes de tristeza em um bom prato de comida? Talvez sua irmã, seu marido, a pessoa ao alcance de um braço...

Antes da paranoia bater à porta e a gente achar que todo mundo parece estar a um passo de entrar no vale das trevas, sugiro uma reflexão. Vamos falar mais abertamente sobre depressão. Sobre sentir a diferença entre uma tristeza passageira e uma tristeza permanente. Vamos nos abrir mais para ouvir e também para falar. Encontre pessoas de confiança e fale de como se sente. E se você for a pessoa de confiança escolhida, ouça com atenção e empatia, despida ao máximo de preconceitos. Você pode estar salvando uma vida.

Para quem não se sente à vontade para se abrir com ninguém, procure o CVV (Centro de Valorização da Vida - disque 188 ou acesse o chat no site). Assim que possível, procure apoio médico e psicológico, no profissional particular, no plano de saúde ou no SUS. Verbalizar as aflições ajuda bastante.

Por fim, sugiro um texto que me marcou bastante. Leia de mente aberta. 5 coisas que eu gostaria de dizer às pessoas que pensam em suicídio.

Fique bem. Chegue ao dia seguinte. Apesar de tudo, tenha certeza de que vale a pena.

Morte e Tristeza

Morte. Substantivo. Sinal de que define alguma coisa. Tem pessoas que dizem que é uma passagem. Outras que dizem que é o fim de um estágio intermediário, vivido na Terra. Uma viagem, um descanso. Gosto da definição filosófica de que é a ausência de vida, deixando para um momento posterior a caracterização do que é "vida".

A morte é a única certeza que temos, fim inexorável da trilha cotidiana. Ainda assim, é um tabu para muitas pessoas. Ninguém fala sobre a morte. Uma infinidade de eufemismos amenizam a verdade crua de que nunca mais veremos aqueles que se foram. Não estou aqui para discutir vida post mortem, mas o fato indiscutível é que não se terá mais contato com o corpo falecido.

Hoje minha avó paterna faleceu. Morreu, como prefiro. Há alguns anos, era meu avô paterno. Pouco mais de 15 anos atrás, eram meus avós maternos, estes em um intervalo de menos de 3 meses entre si. Eu sinto grande saudade dos quatro, mas em meu âmago não creio em vê-los novamente. Nunca mais. Nem em vidas futuras, nem no Céu, reincarnações, contatos espirituais, nada. E o que fica é a saudade...

A morte é a evidência máxima de que não somos habituados a cultivar a saudade como algo que pode ser positivo. Lembrar com carinho de uma cena, uma frase, um momento, entristecer-se com dignidade e se recolher em contemplação e memória afetuosa. A tristeza em excesso é nociva, mas tudo em excesso o é, até a felicidade, perigando tornar-se êxtase, vício, egoismo.

A morte é o apogeu da tristeza. E a tristeza é um sentimento pouco explorado por nós. A tristeza saudável é a abertura das portas do ser para o afeto e a empatia. A criatura mais durona do mundo se dispõe a um abraço na tristeza. O rochedo impenetrável se trinca e escorre em lágrimas ao se entristecer, pedindo sem palavras por um acolhimento, por um ombro, por um acalento.

Eu tive que, a duras penas, aprender a conviver com a tristeza; a minha e a daqueles de quem eu amo. Fechar a boca e abrir os braços. Aquecer o coração para receber um fragilizado e resfriado. E também a abaixar a guarda e deixar o choro soluçar e descer líquido pelo rosto.

Neste meu primeiro Dia dos Pais do lado dos congratulados, te convido a amadurecer junto a compreensão da morte (sem atalhos) e a aceitação da tristeza como peça fundamental do dia-a-dia. Minha avó teve uma vida digna. E vou me lembrar dela com saudade e tristeza sadias.

Bárbara

Bárbara não fala. Bárbara come, muito. Come quando tem o que comer e pede comida sempre que possível. Ver Bárbara comer é um misto de contemplação e ansiedade, tamanha a voracidade com que ela devora o que vê que dá para engolir. Eu gosto de ver Bárbara comendo, mesmo que seu esgano soe ofensivo aos olhos não treinados a enxergar que o que ela faz simplesmente é a absoluta entrega ao prazer glutão.

Bárbara não fala. Bárbara dorme, muito. Ela deve dormir mais de 12 horas por dia, todo dia. É ver um colchão, uma cama ou um sofá que ela se joga aconchegante, esparramada, dominadora de toda a maciez disponível. Na verdade, Bárbara dorme até no chão duro, principalmente em dias de calor. E sonha, e ronca, e tem pesadelos, e resmunga enquanto dorme. Também gosto de contemplar Bárbara dormindo.

Bárbara não fala. Bárbara se comunica pelo toque. Ela se projeta em você na alegria, se encosta na calmaria, te conforta na tristeza. Dentro da sua capacidade, ela lê a conjuntura e se pronuncia sem palavras, mas com tato.

Bárbara não fala, mas sabe ouvir o que os corações dizem. Quando eu caminhei pelo vale da sombra da morte, Bárbara se deitou ao meu lado, em silêncio, vigilante. Sentiu minha dor sem que eu houvesse reclamado e se compadeceu. Acompanhou meus passos até o sol nascer. Nos adotamos desde então.

Bárbara não fala, então ela não vai se despedir. Eu sei que ela está indo embora e quando for será sem avisar. Quando ela sair pela última vez pela porta, um pedaço de mim irá também e eu estarei um pouquinho menor, incompleto, vago.

Gostaria de acreditar que Bárbara sente por mim o que eu sinto por ela.

Bons.tapas

Eu.leio.também

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